……………………………………..Matéria de Heloísa Noronha, publicada originalmente no portal Universa, do UOL, em 04/10/2018

 

O incesto emocional não tem a ver com sexo. Porém, é um tipo de interação que confunde os limites entre o adulto e a criança de uma maneira psicologicamente inadequada e que tem consequências tão devastadoras quanto um abuso físico. Nem sempre é algo intencional. “Muitos pais e mães sequer se dão conta do que estão fazendo”, diz a psicóloga e psicopedagoga Elizabeth Monteiro, autora do livro “A Culpa É da Mãe – Reflexões e Confissões Acerca da Maternidade” (Ed. Summus). Trata-se de um processo inconsciente. Para entender melhor do que se trata, vale conhecer quais são as situações mais recorrentes:

Situação 1: a criança é colocada no papel de confidente

Em casais onde o diálogo é complicado ou quando a relação entre os dois não anda bem, o incesto emocional ocorre quando um dos dois passa a tratar o filho como ouvinte de reclamações e desabafos. “Quando um casal enfrenta problemas, os filhos podem não ter maturidade para entender o que está acontecendo. E, com frequência, saber detalhes da situação mais machuca do que ajuda”, fala a psicóloga Dora Lorch, autora de “Como Educar Sem Violência” (Ed. Summus). “Vou dar o exemplo do pai que trai a mãe: ele foi infiel à mulher, não aos filhos, mas em alguns relatos parece que o pai traiu os filhos ao se relacionar sexualmente com outra pessoa. Será? Será que desejar viver com outro alguém faz dele um pai menos carinhoso com os filhos?”, indaga.

Ouvir certas confidências faz a criança se sentir usada e aprisionada, mesmo que ela não se dê conta disso. Outro comportamento comum é desprezar a diferença de idade e a hierarquia e tratar essa criança como se fossem amigos, e não mãe/pai e filho. Isso acontece entre pais e mães que querem participar dos programas dos filhos de uma maneira invasiva. “Na vida familiar, é preciso haver uma hierarquia e um certo distanciamento para permitir que o filho cresça e se desenvolva como pessoa”, diz Dora.

Situação 2: a criança vira substituta de um parceiro

Ou seja, o pai ou a mãe transfere para a criança a atenção e o carinho que gostaria de receber do par. Atinge com maior frequência com filhos do sexo oposto e quando a mãe ou o pai é solitário. “Os recém-divorciados podem sentir a ausência do parceiro intensamente. Com aspectos de seus filhos lembrando-os do ex, a ocorrência de incesto emocional pode ser aumentada”, informa Monica Pessanha, psicopedagoga e psicanalista infantil e de adolescentes, informa Monica Pessanha, psicopedagoga e psicanalista infantil e de adolescentes, de São Paulo (SP).

“Pela dificuldade de lidar com a família fragmentada, muitos genitores buscam refazer o imaginário da família ideal ‘readaptando’ a criança para a função de marido/pai ou esposa/mãe. Em determinados casos, um dos pais até projeta na criança a expectativa de que ela possa ser o marido ou a esposa perfeita que não tiveram”, comenta Silvia Malamud, psicóloga clínica especializada em terapia de casais e família, também da capital paulista.

Silvia diz que, como tanto crianças como adolescentes têm necessidades emocionais relacionadas às suas idades, o peso dessas demandas costumam afetar drasticamente sua futura vida emocional e afetiva. “Volta e meia recebo em meu consultório jovens em estados depressivos severos, com perda de interesse pela vida, pelos estudos e por tudo o que poderia auxiliá-los em seus rumos de vida adulta independente. Eles sequer alimentam a esperança de serem eles mesmos pela árdua missão que têm de substituir os pais”, relata a terapeuta.

Até mesmo casais que vivem juntos podem virar reféns desse mecanismo sufocante quando não são conectados emocionalmente e levam uma vida automatizada mais voltada para fora do que para dentro. “Nesse padrão de funcionamento, muitos pais acabam sendo permissivos além da medida, permitindo que filhos durmam entre o casal, por exemplo, num contexto que, muitas vezes, ativa ainda mais a desconexão da dupla, promovendo outros tipos de conexões psicológicas não saudáveis”, explica Silvia.

Situação 3: o filho como “propriedade” dos pais

“Ela é a princesinha do papai”, “Ele é o namoradinho da mamãe”, “Só vai namorar depois que fizer 20 anos”, “Se aparecer algum(a) vagabundo(a) aqui na porta, eu boto para correr”… Frases tidas como carinhosas, em princípio, podem apenas sinalizar superproteção. No entanto, o que muitos pais e mães expressam sem se dar conta, na verdade, é um sentimento nocivo de posse e ciúme. No futuro, a probabilidade de atrapalharem os relacionamentos amorosos dos filhos é muito grande.

Segundo Silvia Malamud, há pais e mães que criam seus filhos para lhe fazerem companhia e não deixam que se relacionem com amigos. “Eles morrem de medo do mundo e obrigam os filhos a viver sob seus medos, em condomínios fechados e círculos sociais restritos, viabilizando a diversão apenas pela internet. Sei de adultos cujos pais nunca permitiram que fossem dormir na casa de amigos ou parentes. Não por achar a casa ou os pais dos amigos inadequados, mas por puro medo deles saírem de perto e se verem frente à sua própria solidão, de perderem o controle”, completa.

Outra forma de incesto emocional é a invasão de privacidade, quando os pais querem exercer sua autoridade entrando e saindo quando bem quiserem de seus quartos e banheiros.

Da sensação inicial de poder à autoestima em frangalhos

De acordo com Monica Pessanha, o incesto emocional tem maior poder na primeira infância, pois a criança vive com os pais uma fusão emocional que até os dois anos de idade é importante para sua sobrevivência saudável. “Mas, quando os pais não se desligam, essa criança poderá criar no futuro uma incapacidade de se ligar intimamente a uma vida saudável com um parceiro adulto”, avisa.

As crianças podem se sentir importantes ou especiais porque são os confidentes escolhidos pelos pais. “Embora provavelmente saibam que estão sendo tratadas de forma diferente das crianças ao redor, a sensação de maturidade pode ser estimulante. Elas também podem sentir-se úteis ou mesmo poderosas, pois são elas quem orientam seus pais durante uma jornada adulta. Porém, mesmo se sentindo bem, ao longo dessa jornada com os pais, há o risco de a criança começar a apresentar problemas emocionais”, observa Monica.

Para Dora Lorch, em muitos casos, os filhos se sentem amados e valorizados sem perceber o alto preço que estão pagando por esse amor. “A questão é que esse comportamento vai minando a autoestima e semeando a dúvida sobre suas qualidades, opiniões e, por fim, sobre a maneira como a pessoa vê a realidade. Ela fica vulnerável e fragilizada”, pontua.

Quem eu sou? Crianças vítimas do incesto emocional nunca se sentem livres para serem quem são. “É como se os pais tivessem lhes tirado a possibilidade de solidificar a própria identidade”, diz Monica. Como esses danos não são facilmente detectados, podem emergir na adolescência ou na vida adulta através de distúrbios alimentares, autoagressão (cortes como forma de autopunição), uso de drogas e depressão em diversos níveis com risco de suicídio.

O problema mais fácil de identificar, porém, é a dificuldade em estabelecer relacionamentos afetivos saudáveis e duradouros. “Muitos filhos são orientados, de modo camuflado ou direto, para que tomem cuidado nos seus relacionamentos por conta dos sofrimentos causados pelas escolhas erradas dos pais. O aviso ‘subterrâneo’, portanto, é que o ideal seria que permanecessem atados ao papel de maridos e esposas desses pais, esses, sim, os parceiros ‘ideais’. Como consequência, ou os relacionamentos são fadados ao fracasso ou essas pessoas sequer pensam em ter algo mais consciente e muitas vezes nem buscam”, afirma Silvia.

E há, ainda, quem se torna alvo fácil de parceiros abusivos, perpetuando a dinâmica tóxica e doentia que vivia na família.

Mudança difícil

Quebrar esse padrão é árduo e complexo. “Sei de casos em que os filhos só conseguiram se libertar e viver como queriam depois da morte dos pais”, diz Elizabeth Monteiro. Na opinião da psicopedagoga, libertar-se é difícil porque essas pessoas cresceram sob o peso da culpa e das chantagens emocionais. “Ao longo da vida, muitas quiseram cortar o vínculo doentio, mas são poucos, de fato, os que conseguem cortar. As sensações de ingratidão e de ter uma dívida com os pais fala mais alto. Além disso, os filhos assumem o papel complementar dessa trama: os pais precisam dominar e eles acabam precisando ser dominados”, afirma.

Já Silvia Malamud destaca que não é raro que a identidade dos filhos desse tipo de abuso fique ‘misturada’ com a do pai ou a da mãe. “Daí, na vida adulta, existe enorme dificuldade em se saber onde um começa e o outro termina. Por conta desse desarranjo, há a dificuldade de impor limites. Como a identidade está baseada na lealdade para com os pais, a vítima ora se sente onipotente, ora se percebe com receio de ser rejeitada se não cumprir com a identidade planejada para ela. Portanto, sentimentos de inferioridade e de não pertencimento sempre serão pano de fundo”, diz.

Por mais difícil que seja, e na maior parte das vezes o processo exige uma terapia, as pessoas precisam se esforçar para estabelecer limites saudáveis com os pais. “Elas têm que trabalhar para recuperar seu senso de identidade, afastando-se de se colocar no papel de cuidador em seus relacionamentos. E isso não é fácil. É um problema para ser tratado a longo prazo, e quase sempre em um processo terapêutico, até porque o incesto emocional é devastador devido à natureza indireta e encoberta do trauma”, aponta Monica.

Para acessar na íntegra: https://universa.uol.com.br/noticias/redacao/2018/10/04/sabe-o-que-e-incesto-emocional-veja-se-foi-vitima-e-nao-perpetue-o-padrao.htm

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Conheça os livros das psicólogas Elizabeth Monteiro e Dora Lorch, mencionados na matéria:


A CULPA É DA MÃE
Autora:
Elizabeth Monteiro
SUMMUS EDITORIAL

Neste livro emocionante e catárquico, a psicoterapeuta Elizabeth Monteiro relata suas experiências – muitas vezes desastradas – como mãe de quatro filhos. Partindo das relações familiares na época de sua avó e passando pela própria infância, ela mostra que as mães, independentemente da geração, erram. Mas não devem se sentir culpadas por isso. Prefácio de Lya Luft.

Para ver outros livros dessa autora, acesse https://amzn.to/2NnkcJ0

 

COMO EDUCAR SEM USAR A VIOLÊNCIA
Autora:
Dora Lorch
SUMMUS EDITORIAL

Toda criança precisa compreender o mundo em que vive, e pais e educadores devem fornecer exemplos diários de boa conduta e agir de maneira coerente com o que dizem. Mas muitos optam pela violência e pela humilhação para ” ensinar”. Agindo assim, criam seres humanos sem capacidade crítica e também violentos. Usando a psicologia para falar de birras, medos, mentiras, vergonha, inconsciente e brincadeiras, a autora constrói um singelo manual de boas maneiras – para os pais. Prefácio de Ruth Rocha.

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