Reportagem de Sarah Alves, publicada originalmente no Universa │UOL em 11/08/2021
A empresária Letícia*, 36 anos, viveu por 13 anos uma relação abusiva com o ex-marido. No começo, as cobranças excessivas foram confundidas com um amor além da conta. Depois, vieram as ameaças e xingamentos. As atitudes, que configuram violência psicológica, agora são crime.
Desde 28 de julho deste ano, a lei 14.188/2021 formalizou o tipo penal para a violência psicológica contra a mulher, com pena de 6 meses a 2 anos e pagamento de multa. Em casos mais graves, a condenação pode ser maior. Universa conversou com especialistas para explicar os principais pontos da decisão e qual a sua importância.
O que é a violência psicológica?
A violência psicológica é, muitas vezes, sutil. No início, as atitudes podem se confundir com um afeto excessivo, que levam a mulher a acreditar que quem abusa está zelando por ela. Com o tempo, as coisas pioram: podem surgir os xingamentos, humilhações, ameaças e se intensifica o gaslighting, manipulações para que a vítima desacredite de suas percepções e sanidade — ou o popular “você está ficando louca”.
“Temos consciência do abuso físico, porque há um ato envolvido. Quando falamos do abuso emocional, nem sempre sabemos”, comenta a psicóloga Ângela Figueiredo, idealizadora da Conexão Rendeiras. Segundo a lei, configura violência psicológica:
“Causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação”, trecho da lei 14.188/2021
Para a psicóloga, as atitudes aniquilam a autoestima da vítima e, em casos mais graves e prolongados, trazem problemas de saúde. “Isso causa uma castração na mulher. Como psicóloga, é preciso avaliar se não houve um estresse pós-trauma, porque o estresse é disparador de depressão, ansiedade e demais transtornos do humor, como o bipolar”, explica.
O que determina a lei?
É assegurado que qualquer mulher vítima de violência psicológica possa denunciar, independente do espaço em que os abusos ocorram: familiar, no trabalho ou escola, por exemplo.
No âmbito da Lei Maria da Penha, houve alteração que torna possível solicitar medida protetiva de urgência. Neste caso, é preciso que a violência tenha sido praticada no contexto doméstico, familiar ou em relacionamentos amorosos.
A lei ainda endureceu o combate à violência contra a mulher ao aumentar a pena em casos de lesão corporal simples — agora de 1 a 4 anos. Também foi criado o Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica, programa para que mulheres possam denunciar as agressões de maneira discreta por um sinal em X, escrito preferencialmente nas mãos, em espaços conveniados.
Quando denunciar?
Toda mulher que sentir dano emocional pode registrar a ocorrência. “Por menor que seja um ato, se entendido que ele gera um sofrimento mental, estresse, tristeza, isso já é suficiente”, afirma a advogada Fernanda Prates, professora da FGV (Fundação Getúlio Vargas) Direito Rio de Janeiro. “Essa agressão é lenta, silenciosa, uma construção de condutas que minam a capacidade da vítima de sair da situação”, completa.
O primeiro passo é reconhecer a violência, tarefa muitas vezes complexa em meio à manipulação. A psicóloga Ângela Figueiredo atenta que ter uma rede de apoio é fundamental para que as pessoas com o olhar de fora da situação alertem e orientem quando há excessos. Buscar suporte profissional com psicólogos também ajuda a identificar os abusos.
É importante ainda a conscientização para reconhecer pessoas com perfil abusivo. “Todos nós podemos ser violentos ou violentados, o que difere é que quem não é abusador, quando se dá conta do comportamento, sente culpa, pede desculpa e tenta mudar. Já quem é, fica nesse modo de agir e, por muitas vezes, tendo prazer com o controle”, alerta.
Fui vítima antes da lei, posso denunciar?
As denúncias são válidas apenas para casos registrados após a criação da lei, ou seja, a partir de 28 de julho deste ano.
Como provar o abuso?
É possível comprovar a violência psicológica com qualquer evidência das ameaças e manipulações, como prints de mensagens, por exemplo. Gravar conversas, ter testemunhas e laudos de profissionais para atestar as consequências dos abusos também influenciam no processo.
“Muitas vezes acontece da vítima apagar as mensagens para já bloquear a pessoa, mas primeiro é preciso fazer o print de tudo e não desperdiçar essa prova, muito importante para o processo e, depois, para a condenação”, reforça a advogada Alice Bianchini, conselheira da OAB SP (Ordem dos Advogados do Brasil São Paulo).
Já a medida protetiva de urgência entra em vigor quando há solicitação da vítima, sem necessidade de comprovar os atos. “A palavra da mulher basta, até porque é um crime praticado em quatro paredes e as estatísticas mostram que a violência existe, então entende-se que a probabilidade de ser verdade é muito grande”, explica Bianchini.
Por que criminalizar?
Denunciar as condutas já nos primeiros sinais é uma maneira de impedi-las de avançar e, inclusive, acontecer de formas mais graves. A violência psicológica pode ser o início de um ciclo com abusos físicos, sexuais, entre outros e, em casos mais extremos, chegar ao feminicídio.
Para as especialistas, há a expectativa de que a nova lei traga à Justiça uma compreensão ampliada sobre a violência contra a mulher, ainda antes de deixar marcas físicas. No Código Penal, o artigo 129 destacava parte desse pensamento, mas sobretudo quando os impactos psicológicos já originavam doenças — como distúrbios psíquicos.
“O artigo fala sobre ofender a integridade física ou saúde da mulher, mas pouquíssimas pessoas levantavam esse entendimento de que a ofensa à integridade psicológica estava embutida”, comenta Alice Bianchini.
A advogada da OAB SP ainda reforça que a criminalização deve criar a consciência sobre a gravidade das condutas e, assim, fazer quem foi condenado se enxergar como abusador. “Como a violência é naturalizada, muitos homens não se reconhecem como agressores e dizem que estão sendo injustiçados pela denúncia, que não existem provas. Condenar serve para entender que a atitude estava em desacordo com a lei e a pena traz a ideia da responsabilização pelo fato”, defende Bianchini.
*nome alterado para preservar a identidade da fonte
Como denunciar a violência doméstica psicológica
Da mesma maneira que outros tipos de violência contra a mulher: em flagrantes de violência doméstica, ou seja, quando alguém está presenciando esse tipo de agressão, a Polícia Militar deve ser acionada pelo telefone 190. O Ligue 180 é o canal criado para mulheres que estão passando por situações de violência. A Central de Atendimento à Mulher funciona em todo o país e também no exterior, 24 horas por dia. A ligação é gratuita.
O Ligue 180 recebe denúncias, dá orientação de especialistas e encaminhamento para serviços de proteção e auxílio psicológico. Também é possível acionar esse serviço pelo Whatsapp. Neste caso, o telefone é (61) 99656-5008.
Os crimes de violência doméstica podem ser registrados em qualquer delegacia, caso não haja uma Delegacia da Mulher próxima à vítima. Em casos de risco à vida da mulher ou de seus familiares, uma medida protetiva pode ser solicitada pelo delegado de polícia, no momento do registro de ocorrência, ou diretamente à Justiça pela vítima ou sua advogada.
A vítima também pode buscar apoio nos núcleos de Atendimento à Mulher nas Defensorias Públicas, Centros de Referência em Assistência Social, Centros de Referência de Assistência em Saúde ou nas Casas da Mulher Brasileira. A unidade mais próxima da vítima pode ser localizada no site do governo de cada estado.
Para ler na íntegra (assinantes UOL), acesse: https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2021/08/11/violencia-psicologica-e-crime-entenda-a-lei-e-saiba-quando-denunciar.htm
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Abuso não-físico contra mulheres
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