Matéria de Ricardo Galhardo publicada no Estadão em 02/07/2020 e reproduzida pelo MSN.

Imagem: Reprodução/FacebookHomem-Pateta: polícia alerta pais de perigo no Facebook

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A luta contra o racismo não diz respeito apenas às pessoas negras, as pessoas brancas também têm responsabilidade. Segundo os professores Flávio Gomes, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e Thiago Amparo, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), ambos negros, a população branca precisa admitir a existência de um racismo estrutural arraigado nas instituições e na mentalidade dos brasileiros. Encoberto há décadas pelo mito da democracia racial, este tipo de preconceito velado se traduz em diferenças no tratamento dispensado pelo aparato do Estado e um abismo na oferta de oportunidades para brancos e negros.

Além disso, os brancos precisam assumir que são a classe privilegiada e se esforçar para que cenas do cotidiano como a ausência de negros em bons postos de trabalho e nas universidades, que passam despercebidos para a maioria das pessoas, não sejam mais vistos como situações normais.

Protesto contra o racismo realizado em São Paulo © Tiago Queiroz/Estadão Protesto contra o racismo realizado em São Paulo

Segundo eles, enquanto pessoas de várias raças vão às ruas do mundo todo gritar que vidas negras importam, na esteira do assassinato do segurança negro George Floyd, nos EUA, o Brasil assiste ao surgimento de uma nova forma de supremacismo branco que importa símbolos estrangeiros, como a bandeira dos confederados norte-americanos, ou ressuscita marcas associadas à escravidão, como a cruz jesuíta que enfeitava a mesa do ex-secretário nacional de Cultura Roberto Alvim –demitido depois de fazer um discurso com referências nazistas.

Flávio Gomes, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Foi preciso ocorrer o assassinato de um negro por um policial nos EUA para vermos a frase ¨vidas negras importam¨ nas nossas ruas. O silêncio em relação à violência cotidiana contra os negros brasileiros mostra como o racismo foi assimilado no Brasil?

Há sim silêncios qualificados das elites brancas enquanto as manifestações anti-racistas são desqualificadas. Sempre houve indignação sobre a letalidade policial relativa a população negra. As comunidades imediatamente se insurgem, protestam, fecham ruas, expondo revoltas. Mas tanto a ação policial não é vista como racismo como o protesto das comunidades não é visto como anti-racismo. Todos falam de direitos e cidadania, mas não querem falar de racismo. Temos hoje o Brasil como a maior democracia racista do mundo. Aproximadamente 110 milhões de homens e mulheres pretos, pardas, pretas e pardos quase-cidadãos.

O que é necessário fazer para combater o racismo estrutural no Brasil?

Há racismos estruturais completamente imersos na vida social, em todas as esferas. Não devemos somente associar com preconceitos interpessoais. As situações se articulam. Há este racismo explicitado em atitudes e comportamentos e também aquele com dimensões institucionais onde a população negra é excluída em termos de condições de vida, emprego, saneamento, escolaridade, direitos sociais, educação. As redes sociais noticiaram que um empresário branco em São Paulo impediu a presença policial na porta da sua casa, inclusive ofendendo policiais, enquanto a polícia no Rio de Janeiro invadiu uma casa a pretexto de perseguir bandidos, disparou 72 tiros e matou um adolescente de 14 anos. O que permite ações tão desiguais senão um racismo permissivo e perverso onde lares brancos e negros são vistos em oposição: privacidade versus espaço da criminalidade?

Quais seriam as soluções?

Para as ações policiais faltam punições. Policiais deveriam ser imediatamente afastados, investigados, julgados, condenados e cumprirem sentenças. Parece complexo, mas é simples. Ao contrário, a impunidade cria um dispositivo naturalizadamente racista no qual um policial pode invadir uma casa na periferia e agredir famílias e pessoas negras. Nada acontece.

Qual deve ser o papel das pessoas brancas no combate ao racismo?

Reconhecer e explicitar cada vez mais que o racismo faz parte do Brasil, dos problemas atuais e das soluções futuras.

O fato de o Brasil não ter tido leis de segregação explícitas como, por exemplo, os EUA, ajuda a camuflar o racismo estrutural?

Houve sempre tentativas desde o pós-guerra de comparações entre Brasil e EUA em termos de escravidão e pós-emancipação. Há mais semelhanças no passado e no presente do que grandes diferenças. Estudos têm demonstrado que houve e há historicamente segregação no Brasil. Não estava em leis mas inscrita socialmente nos modelos de urbanização e nas justificativas arquiteturais e higienistas. Também no Brasil estudos têm demonstrado o surgimento de grupos racistas nos moldes supremacistas em várias cidades do interior com negros sendo perseguidos, humilhados, expulsos de suas casas e mesmo enforcados em praça pública. Paradoxalmente houve no fim da escravidão nos EUA políticas mais ampliadas de acesso a terra enquanto no Brasil, no pós-abolição, as formas camponesas negras ficaram sem quaisquer assistências do Estado.

Por que os negros do Brasil não conseguem se organizar enquanto força política/eleitoral?

Muitas vezes se cobra dos movimentos negros a transformação de lutas em votos. No período da Constituinte de 1946 houve um debate sobre a questão racial, assim como na Constituinte de 1988, com parlamentares negros. Também temos o Estatuto da Igualdade Racial. Enfim, o problema nunca foi voto negro e eleições. A questão maior é a invisibilidade da questão racial, ao contrário da questão agrária ou trabalhista.

O que explica a recente ascensão de políticos negros que negam ou relativizam o racismo?

Não adianta só responsabilizar políticos negros conservadores. Havia candidatos e políticos negros em setores da ARENA e MDB na época da ditadura e depois redemocratização. Há uma agenda conservadora que se alinha ao racismo estrutural e sua face perversa de insensibilidade. Pode haver modelos de democracia mais de esquerda, de centro ou até mais a direita. Mas nenhuma pode contemplar e naturalizar o racismo. O fim da desigualdade, a distribuição de renda, modelos de desenvolvimentos e cidadania passam pelo fim do racismo. Não avançaremos muito sem isso.

Thiago Amparo, professor da Fundação Getúlio Vargas

O que diferencia o racismo estrutural das outras formas de discriminação racial?

Racismo estrutural vai além das ações individuais e daquele racismo entre duas pessoas como o insulto racial, o ato de discriminação direta de uma pessoa contra a outra. O racismo estrutural significa o engessamento e a normalização dessas relações desiguais de poder por causa das questões de raça e cor. Isso entra em diferentes aspectos desde a questão da economia, acesso a oportunidades, tratamento pelo sistema de Justiça. Ele está engendrado na sociedade.

O que é necessário fazer para combater o racismo estrutural?

A gente precisa efetivamente desmantelar os gargalos que permitem a discriminação em razão de cor e raça. O investimento em educação, não só em cotas raciais que é muito importante, mas também pensar a distribuição do orçamento. Uma coisa que tem um impacto muito grande em mobilidade social e no crescimento socioeconômico de pessoas negras no Brasil, especialmente mulheres negras, é o investimento em educação infantil. Por outro lado precisamos equalizar o acesso à Justiça e a garantia de direitos. Falo de melhorar o sistema de Justiça para que ele não seja racialmente seletivo em relação a pessoas negras e pobres. Tem ainda a necessidade de aprimorar e padronizar a atuação da polícia para diminuir a abordagem discricionária que em geral é infligida contra a população negra. E há também ações relacionadas ao mercado de trabalho que podem ser incentivos para políticas afirmativas, ou investir em cotas raciais para que haja uma mobilidade social maior de pessoas negras. Então o racismo estrutural é histórico, não vai ser desmantelado de um dia para o outro, mas começa a cair quando a gente desnuda as relações de poder que são implícitas a ele, seja no orçamento público, seja no acesso à Justiça, do mercado de trabalho.

E em relação ao racismo implícito que está impregnado na mente das pessoas?

Tem o componente cultural. A gente precisa falar sobre o racismo mais e mais. Não podemos entender a questão racial como algo a ser falado uma vez por ano. Para isso precisamos de uma mudança cultural. A Sueli Carneiro (filósofa, escritora e ativista) fala que a raça foi colocada como subentendida na questão de classe tanto à direita como à esquerda. A esquerda porque entendia que a classe era mais importante e a direita porque acreditava que a raça está dissolvida no mito da democracia racial. Tanto na direita quanto na esquerda existe uma histórica resistência em colocar a questão racial no cerne do debate público.

Como fazer isso?

Primeiro a gente tem que desconstruir a ideia de que a questão racial é só dos negros. A gente está falando de relações raciais e isso envolve os brancos, as relações de poder que são determinadas e influenciadas pela questão racial. Então, falar de racismo significa falar também da atuação das pessoas brancas na manutenção de uma hierarquização, de uma situação de poder.

Você diz que direita e esquerda esconderam a questão racial embaixo do tapete das relações de classes mas hoje o discurso anti-racista não é mais associado à esquerda?

No momento atual de ascensão da extrema direita ironicamente a questão racial nunca esteve tão em voga, mas em outro sentido, de referências ao supremacismo branco, de resgate de símbolos coloniais. Um exemplo é quando quando Roberto Alvim usa uma cruz jesuíta na mesa dele. Tem pessoas de extrema direita no Brasil usando símbolos da Confederação (escravocratas do Sul dos EUA que perderam a Guerra Civil) imitando o discurso supremacista branco norte-americano. De certa forma é interessante porque no Brasil historicamente não foi assim. O Brasil tinha um discurso de louvor à miscigenação como forma de superação da questão racial. E hoje tem a celebração de uma branquitude mesmo.

Qual é o papel dos brancos no combate ao racismo estrutural?

Os brancos têm um papel muito importante na luta anti-racista primeiro reconhecendo seus privilégios e utilizando estes privilégios para contribuir na construção de uma sociedade sem racismo. Não existe racismo sem privilégio. Você pode ser uma pessoa que não liga para a questão racial mas ao não ver e não agir você contribui indiretamente para mantê-las. Temos que desmantelar a ideia de que brancos não podem falar da questão racial. O lugar de fala de pessoas brancas na luta contra o racismo é entender o próprio privilégio, entender as relações de poder e olhar para a sua branquitude de forma crítica. Começa por saber o nome da pessoa negra que está ali te servindo, desnormalizar a ausência de pessoas negras em espaços brancos e pensar ativamente em como melhorar isso.

Para ler na íntegra, acesse:https://www.msn.com/pt-br/noticias/brasil/popula%c3%a7%c3%a3o-branca-precisa-admitir-a-exist%c3%aancia-de-um-racismo-estrutural-avaliam-professores/ar-BB16g4RF?li=AAggNbi

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Flavio Gomes é autor da Selo Negro Eições. Conheça seus livros publicados pelo selo:

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POLÍTICAS DA RAÇA
Experiências e legados da abolição e da pós-emancipação no Brasil
Organizadores: Flávio GomesPetrônio Domingues

Esta coletânea, escrita por pesquisadores brasileiros e estrangeiros, aborda um longo período da história do nosso país: dos anos 1870, com o início do movimento abolicionista, a 2010, quando o STF julgou constitucionais as cotas raciais na Universidade de Brasília. Entre outros assuntos abordados estão: a formação dos quilombos; a migração de libertos por São Paulo e Rio de Janeiro; os negros no movimento republicano brasileiro; as representações culturais dos negros na música, na cultura, nas artes e na religião; linchamentos raciais no Oeste paulista; a luta entre imigrantes e ex-escravizados pela posse de terra e por moradia; a atuação dos negros na luta contra a monarquia; as relações entre o movimento operário e os trabalhadores negros; comunismo, integralismo e a Frente Negra Brasileira. Trata-se de uma obra completa, lastreada tanto pelo uso de fontes e abordagens diversas quanto pela pluralidade de ideias e pela multiplicidade de interpretações.

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EXPERIÊNCIAS DA EMANCIPAÇÃO
Biografias, instituições e movimentos sociais no pós-abolição (1890-1980)
Organizadores: Flávio GomesPetrônio Domingues

Esta coletânea reúne a história de milhares de ex-escravos e de seus descendentes dos últimos anos do século XIX até a década de 1980. De forma plural e inovadora, analisa os significados do pós-abolição – período de propostas, lutas e expectativas – por meio de biografias, da trajetória dos movimentos sociais e da formação e consolidação de instituições negras.

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MULHERES NEGRAS NO BRASIL ESCRAVISTA E DO PÓS-EMANCIPAÇÃO
Organizadores: Flávio GomesGiovana XavierJuliana Barreto Farias

Como foi a participação das mulheres cativas na sociedade escravista e nas primeiras décadas da pós-emancipação? Como protestaram mirando a escravidão e contrariando a ideia de que aceitaram com passividade a opressão imposta? Os ensaios desta coletânea, que abrange os séculos 18 a 20, constituem um quadro amplo e fascinante das experiências das mulheres africanas, crioulas, cativas e forras.

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RELIGIÕES NEGRAS NO BRASIL
Da escravidão à pós-emancipação
Organizadores: Flávio GomesValéria Gomes Costa

Na historiografia brasileira, ainda são poucos os estudos que revelem em detalhe as práticas cotidianas, de invenção da cultura – também aquela material –, cobrindo todo o Brasil rural e urbano da escravidão e pós-emancipação. O que acontecia no interior das senzalas, nas matas circunvizinhas das fazendas ou nos becos, casebres e zungus (como eram chamadas as moradas dos africanos e crioulos nas cidades)? Muita coisa a ser redescoberta, descrita e analisada. Entre os séculos XVII e XIX, as experiências religiosas, sobretudo as de origem africana, foram reinventadas e modificadas permanentemente em diversos espaços. Nesta coletânea, os organizadores reuniram pesquisas inéditas sobre as formações religiosas negras em cidades coloniais e pós-coloniais do Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco, São Paulo, Paraíba, Sergipe, Maranhão, Alagoas, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Das devassas em torno dos calundus ao sincretismo com o catolicismo de monges beneditinos; da perseguição do Tribunal de Inquisição às santas africanas; do medo da feitiçaria à união entre religião e política; das batidas policiais que reprimiam e perseguiam as casas de dar fortuna, os cangerês e o candomblé às influências africanas sobre festas religiosas católicas.Assim, este livro mostra que, ao longo do tempo, experiências religiosas se inventaram e renovaram-se, perdendo e ganhando sentidos, significados e símbolos. Em meio à intolerância – inclusive racial, social e cultural –, encontramos disputas pela memória, pela origem e pelos mercados da crença.

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