Texto parcial de matéria de Luisa Souto, publicada no Universa UOL, em 24/08/2020.

“Atendi uma criança de cinco anos que falava que tinha saudade da brincadeira de sorvetinho que papai fazia com ela. Na verdade, ela fazia sexo oral nele, que dizia para a criança que aquilo era bom, gostoso.”

O relato é da psicóloga Rosemary Peres Miyahara, coordenadora da área de formação do Centro de Referência às Vítimas da Violência do Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo, e também de um grupo de estudos sobre agressores sexuais, que visa ações de atendimento, prevenção, formação e pesquisa sobre o tema do abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes.

Ao comentar com a reportagem casos como o da criança que atendeu e o da menina de dez anos do Espírito Santo, abusada pelo tio, que engravidou e interrompeu a gestação num procedimento legal, Rosemary explica que, muitas vezes, é difícil a criança perceber que está sendo abusada.

“Às vezes, a criança pequena é abusada, mas dentro do clima de sedução. Ela não tem maturidade para entender que aquele tipo de troca não cabe no espaço de vida dela, e é conduzida por um adulto, que tem um significado para ela e que a coloca num lugar especial. Isso é dito por Freud desde 1905, que a criança vai em direção ao adulto pela linguagem da ternura e confunde essa ternura e o erotismo. É o que a gente chama de identificação com o agressor.”

A psicóloga comenta a reação negativa da sociedade a fatos como esse, como a fala de uma professora de educação básica da rede estadual de SP que publicou em uma rede social mensagens dizendo que o caso da menina “não foi nenhuma violência” e acabou sendo demitida.

“Temos mais chance de transformar essa experiência traumática da menina do que a interação sexual em si. Há uma imposição da precocidade na vida dela, que diz que ela deixou, quis aquilo e por isso engravidou. Percebe a imposição que a cultura pode colocar numa situação como essa?”, questiona.

Incutida nessa imposição há ainda as dúvidas sobre o relato da vítima. Em diferentes reportagens, Universa já ouviu de vários especialistas que é comum a família, e até a própria mãe da criança, não acreditar que seu companheiro ou outro parente próximo possa ter tocado sua filha. É o que especialistas chamam de mecanismo de negação.

“Para algumas mães, a dor de acreditar que o pai abusou do próprio filho é tão grande que elas passam a não acreditar naquilo que sabem que está acontecendo. Acham que é fantasia da criança ou mesmo que ela não gosta do abusador”, explica Rose.

“E quando a criança não fala, diz que não lembra ou não tem condições de elaborar um relato, até para proteger o próprio abusador, por medo do que vai causar na mãe, aí acham que é porque [o crime] não aconteceu. Por isso, um caso como esse toma essa proporção, mas traz à tona um tema que temos que lidar.”

Agressor pode ter sido vítima de abuso

Em sua tese de doutorado sobre o tema, Rose cita estudos clínicos que constataram que 35% dos abusadores sexuais do sexo masculino também sofreram abuso sexual quando crianças. Os atendimentos a autores de agressão coordenados por Rose corroboram os dados. “A estatística das pessoas que a gente atende que são autores de agressão e sofreram essa experiência na infância é enorme. Ele vai acumulando elementos da estrutura perversa. É a perversão como laço social. Existem contextos que favorecem isso. O cara que se excita com a menina de 11 anos vai para a internet buscar imagens. Se ele cai numa rede de exploração sexual de crianças e adolescentes, será estimulado a fazer parte de um clube que vai passar ao ato. Existe algo na nossa cultura que vai estimulando que as pessoas cheguem a esse tipo de codificação.”

É com base nesses estudos e observações que Rose aponta ser preciso compreender a dinâmica que gera o abuso, para “pensar a intervenção junto ao agressor sexual”. E isso é feito escutando também esse agressor, para se pensar nas formas de atendimento a ele. Ela explica em sua tese:

“A atuação junto à trama incestuosa nos convoca a apurar estratégias que abordem as singularidades dos sujeitos envolvidos nesta dinâmica, bem como à assunção de responsabilidade em intervir junto aos elementos que configuram a perversão como uma perturbação social.”

Na equipe que coordena, os profissionais que atendem agressores trabalham para que eles revelem para si mesmos o que aconteceu em sua vida até chegarem a cometer o crime —ou quase cometer. Nos processos, eles são lembrados das possíveis consequências de seus atos, como responder a um processo criminal.

“O exercício principal é ir além do ato hediondo que esse sujeito cometeu. Precisamos ouvir a história do indivíduo abusivo. Se a gente ficar preso no ato, no mal-estar, não consegue fazer absolutamente nada.”

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Para ler na íntegra, acesse: https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2020/08/24/estupro-de-vulneravel-menina-estuprada-no-es.htm

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A psicóloga Rosemary Peres Miyahara, fonte da matéria, -é organizadora e coautora de dois livros do Grupo Summus sobre o tema. Conheça-os abaixo:

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A VIOLAÇÃO DE DIREITOS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES
Perspectivas de enfrentamento
Organizadores: Christiane SanchesDalka Chaves de Almeida FerrariRosemary Peres Miyahara
Autores: Amaia Del CampoAna Cristina Amaral Marcondes de MouraBeatriz Dias Braga LorenciniBruna Limongi De DomenicoChristiane SanchesCláudio Hortêncio CostaDalka Chaves de Almeida FerrariEdson Takeyama MiyaharaIrene Pires AntônioJefferson DrezettJoana FernandesLilian Aparecida de Brito AlvesManoela de Oliveira LainettiMarisalva FáveroMichelle Barros Marques dos SantosPaulo César EndoReinaldo Cintra Torres de CarvalhoRosemary Peres MiyaharaSónia Oliveira
SUMMUS EDITORIAL

Muitos são os dilemas e impasses dos profissionais que compõem a rede de proteção integral à criança e ao adolescente em situação de violência. Muitas também têm sido suas iniciativas e possibilidades no enfrentamento da questão. Trata-se, sem dúvida, de um campo em constante construção. Este livro comemora os 20 anos do Centro de Referência às Vítimas de Violência do Instituto Sedes Sapientiae, trazendo importantes contribuições ao debate nessa área. Escritos por profissionais da equipe e por parceiros de percurso de atuação, os textos retratam de forma vívida as conquistas e os desafios daqueles que lutam pelo direito que crianças e adolescentes têm de crescer e viver num ambiente seguro e acolhedor.

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O FIM DO SILÊNCIO NA VIOLÊNCIA FAMILIAR
Teoria e Prática
Organizadoras: Dalka Chaves de Almeida Ferrari, Tereza Cristina Cruz Vecina
Autores: Ana Carolina CaisArlete Salgueiro ScodelarioBeatriz Dias Braga LorenciniCecília Noemi M. Ferreira de CamargoDalka Chaves de Almeida FerrariGisela Oliveira de MattosIrene Pires AntônioLígia FromerMaria Amélia de Sousa e SilvaMárcia Rosana Cavalheiro GarciaRonaldo Pereira de SantanaRosemary Peres MiyaharaTereza Cristina Cruz Vecina
EDITORA ÁGORA

Os artigos aqui reunidos foram escritos por profissionais de centro de referência às vítimas de violência – CNRVV. O livro aborda temas como a retrospectiva da questão da violência, o modo de funcionamento de uma sociedade e as intervenções possíveis. É uma obra de grande importância para todos que lidam com esse tema devastador, mostrando que há, sim, saídas possíveis.

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